O ano é 2021. O novo coronavírus ainda está no ar, não foi descoberta uma vacina. O mundo
entrou em colapso. No Brasil, mais precisamente em Copacabana, no Rio de Janeiro, Diana,
Breno e o filho Felipe, Dona Palma, Marina, Miranda, Seu Lindomar e a mulher Silvana,
sobreviveram à Covid-19 e tentam estabelecer uma comunidade autossustentável no prédio
em que vivem. Apesar das máscaras, luvas e outros equipamentos de proteção pessoal,
encontram uns nos outros sentimentos perdidos antes mesmo da pandemia: amor, respeito,
cooperação, solidariedade, e, acima de tudo, esperança. Através de relatos pessoais, a história
desses personagens quase reais vai sendo revelada. O antes, o durante e o depois da explosão
da doença, seus medos e desafios, seus desejos e incertezas. Até que o inevitável acontece.
Diana e Breno se apaixonam. E agora? Correrão o risco em nome do desejo? Irão encarar o
abismo em nome do amor?
Os acordes da Primavera de Vivaldi invadiram o prédio. Eram quatro e vinte e um da
tarde, Diana viu no relógio de pêndulo que era sua relíquia mais preciosa naqueles dias. “Dona
Palma”, pensou. O dia era 22 de setembro, o ano era 2021 e a vida nunca mais voltara ao
normal depois da virada de 2019 para 2020. Mesmo assim, as estações seguiam seu curso
natural, como se nada de estranho estivesse acontecendo.
Diana tirou do varal uma máscara, cobriu o nariz e a boca, colocou os óculos de grau
defasado e abriu a janela. Apesar de não ser seguro para um ser humano respirar livremente,
o céu era de um azul límpido, um convite demoníaco a um passeio na praia, um mergulho no
mar. Mas, não. O vírus que acometera a humanidade ainda não dera alforria aos pensantes.
Fechou os olhos rapidamente e se deixou invadir pelo som das teclas de marfim do piano de
dona Palma, que anunciava o equinócio daquela estação, assim como já alardeara verão,
outono e inverno. Também chegaram de longe cantos de pássaros, o rugido das ondas, e os
gritos que tiraram Diana da ilusão de que tudo pudesse ser bonito outra vez.
Olhou para baixo. O mar de prédios do ex-bairro tradicional em que morava exibia
janelas fechadas. Aqui e ali, uma fresta se abria para deixar entrar a lufada de esperança que a
música sempre traz. Nas calçadas, alguns poucos sobreviventes, como ela. Não sabia de onde
vinham, eram moradores de outras ruas, do tempo em que a vida era aceleração e dinheiro.
Um casal brigava dentro de um carro invadido, estacionado há meses em frente ao prédio,
sem uso, talvez sem dono vivo. Fechou mais uma vez os olhos e esperou que o piano se
calasse, pensando em quantos dias mais teria de enfrentar aquilo tudo. Depois do acorde
final, gritou “obrigada, dona Palma” e voltou a fechar a janela.
Diante do espelho do banheiro, encarou o rosto entristecido, o cabelo sem salão, os
olhos de quem não faz ideia do futuro, só conhece o presente. Duro. Asfixiante. Puxou as
madeixas para cima num rabo de cavalo, cobriu tudo com um lenço – costumava ter lenços
bonitos, de enfeite, hoje todos estavam desbotados de tanto lavar, desinfetar -, respirou fundo
e foi cumprir a jornada da tarde.
A área comum do edifício, onde antes existia um jardim em que bebês e velhos
tomavam sol, fora transformada em horta comunitária. Num esforço conjunto, os 8
moradores sobreviventes haviam transformado o condomínio em comunidade. Tudo fora
reaproveitado. Os apartamentos desabitados, depois de algum tempo sem vivos ou mortos,
tinham sido saqueados em busca de sobras de comida, roupas, remédios, cobertores,
ferramentas, panelas… qualquer coisa que pudesse ser reciclada. Diana, Dona Palma, Breno e
Felipe – pai e filho -, as irmãs Marina e Miranda, Seu Lindomar – o porteiro -, e a mulher
Silvana, sobreviventes do Pandora à Covid-19, passaram a formar uma espécie de família.
Em casas separadas, como convinha num mundo refém de uma pandemia, mas unidos como
se por sangue.
Juntos, criaram ali a própria subsistência e, já fazia algum tempo, saíam de dois em
dois em busca de outros como eles, que, sabe-se lá por que razão, não haviam contraído a
doença que matara milhões – até quando tinham notícias, televisão, internet, governo e bolsa
de valores, coisas que agora pareciam invenções sem sentido. Mas raramente encontravam
semelhantes. Os designados da vez, iam empurrando carrinhos de supermercado, um cheio, o
outro, vazio, para que pudessem recolher o necessário.
Não sabiam exatamente o motivo, mas o final da tarde e o começo da noite eram mais
propícios para as excursões. Entenderam isso por experiência, depois que uns e outros saíram
de dia e voltaram doentes ou não voltaram. Talvez fosse mesmo a natureza impondo a
reclusão. Se o dia fosse seguro, em pouco tempo as pessoas sairiam frenéticas em busca de
suas vidas velhas, querendo gastar sapatos, roupas, tintas de cabelo, cartões de crédito. À
noite, até os bancos dormiam, apesar dos aplicativos. Confinados em horário comercial, seres
humanos foram obrigados ao silêncio, depois que até mesmo a tecnologia se calou. Morreram
cientistas, banqueiros, juízes, criminalistas, presidentes, donos de loja, restaurante, papelaria.
Morreram T.I.s, farmacêuticos, professores, pesquisadores, criadores de gado, alunos,
artistas, médicos, enfermeiros, bailarinos, biólogos, marceneiros, costureiros, cozinheiros,
bancários, epidemiologistas, etimologistas. Morreu o mundo que se conhecia. Até quando se
podia acompanhar as notícias, sabia-se que mares e ares estavam mais limpos, gazelas
corriam sem medo de rifles, leões caçavam fora de jaulas, tartarugas não ficavam mais presas
em redes. Cativa, só a espécie humana.
Houve um momento em que se desprezou a força do inesperado, quando homens e
mulheres acreditavam ser capazes de driblar o invisível. Em nome do vil metal, havia uma
certeza de cura, vacina ou remédio que fizesse com que mais uma vez os pensantes
controlassem o universo. Aos poucos, foram todos – ou quase todos – caindo. O vírus foi
sofrendo mutações, tornando-se cada vez mais letal, mais desafiador, e não houve mão
humana que tivesse força contra ele. Assim, quem teve juízo se recolheu e esperou. Esperou.
Esperou. E segue esperando. Ninguém sabe até quando.
Diana e Breno saíram pela portaria do Pandora cobertos por suas roupas de plástico,
máscaras, luvas e óculos. Quem primeiro recebeu ajuda foi o casal habitante do carro
estacionado. Já não brigavam mais, agora cantavam juntos, enquanto viam o sol se pôr lá
onde a vista alcançava, na linha que junta céu e mar. Receberam sabonete, mantimentos e
máscaras novas, feitas por Silvana, com a ajuda de Marina e Miranda, que aproveitavam
qualquer tipo de tecido que viesse das empreitadas do lado de fora. Alex e Cristina, os
moradores do carro, já viviam na rua, antes da pandemia. Usuários de crack, assustavam os
locais endinheirados com seu aspecto selvagem. Não foram contaminados – talvez já
vivessem inferno interior suficiente –, e depois de uma abstinência atroz e forçada, viram-se
livres do vício e culpados pelo “desperdício” dos anos de limbo. Que ironia. Agora que
estavam “aptos a uma vida civilizada”, a civilização não existia mais. Não como antes.
Diana e Breno seguiram sua jornada, entregando o que tinham e pegando o que
julgavam importante – tudo era guardado em sacos fechados para posterior desinfecção. No
caminho, conversaram. Era a primeira vez que saíam juntos. Riram de alguma coisa boba que
um dos dois disse, dividiram angústias, trocaram planos antigos para um futuro que não se
concretizou.
A mulher de Breno morrera fora do Brasil, logo que a pandemia eclodiu. Estava numa
viagem de trabalho. A parte mais difícil tinha sido explicar para Felipe, de cinco anos, por
que a mãe desaparecera. Diana tinha acabado de terminar um relacionamento longo. Não
sabia se o ex estava vivo ou morto. Nos primeiros dias de isolamento, teve crises constantes
de ansiedade. Depois de um mês, passou a ter esperança. Mais dois e foi abatida por uma
tristeza profunda. Aos poucos, as notícias eram de mortes empilhadas, saques, violência,
governos caindo, escassez… fechou-se. Sem luz, desistiu dos equipamentos tecnológicos
antes mesmo que eles deixassem de funcionar. Blasfemou contra o piano de dona Palma, que
não sossegava dia nenhum. Leu e releu toda a sua biblioteca, fez planos, desfez, chorou, ficou
sem trocar de roupa três dias seguidos. Até que a última lata de milho acabou. Foi então que
desafiou a morte. Saiu do apartamento e encontrou Silvana e seu Lindomar plantando batatas
– literalmente – na área comum do edifício, contígua ao terraço do térreo de Dona Palma.
Disse que estava com fome, o porteiro lhe ofereceu comida. Comeu ali, enquanto observava o
plantio. Pouco tempo depois, estava com eles, mexendo na terra e se sentindo viva.
Os dias ficaram melhores, não bons, mas melhores. E ela passou a acreditar que vivia
uma nova realidade. Com Breno foi diferente. Sabia que não podia cair, ou Felipe sofreria
ainda mais. No começo, manteve a rotina de escola online, exercícios, leituras, conversas
com amigos, postagens em redes sociais. Lives, muitas lives good-vibes. Até que os serviços
foram escasseando. A luz faltou, a bateria falhou, o mundo escureceu. Manteve a sanidade
inventando com o filho uma história que não teria fim, só quando quisessem. Também
precisaram de rua e deram as mãos aos condôminos na nova modalidade de vida.
Agora estavam ali, Diana e Breno, vizinhos desconhecidos por anos, íntimos pela
primeira vez, mascarados sem que fosse um baile de carnaval. Sem que tivessem sido antes
parceiros ou amigos. Sem que lembrassem que o desejo pode surgir de uma fresta qualquer
do corpo humano. Olharam-se. Desejaram-se em silêncio, pela primeira vez, por segundos
que foram uma eternidade. Por mais que quisessem, não se tocariam, não se abraçariam, não
conheceriam o calor da pele um do outro, não sentiriam o gosto da boca um do outro, não
arriscariam a própria e possível letalidade.
Sorriram, o que perceberam pelo brilho dos olhos, e seguiram. Tinham muito o que
fazer ainda, antes de voltarem ao Pandora. Quem sabe um dia ousariam? Quem sabe um dia o
amor voltaria a se traduzir em beijos? Por ora, amavam-se como sobreviventes de uma
espécie. Mas sabiam: amavam-se.
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O preferido de Dona Palma era Mozart. Alegre, ótimo para dedos serelepes, como os
dela. Foram muitos anos dedicados à música. Dona Palma, 104, estava prestes a completar
- Anos. Isso, mesmo. Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, ela deu de ombros. Já passara
por duas guerras mundiais, pela Gripe Espanhola, pela quebra da bolsa, ditadura militar… e
por uma pandemia que pouca gente conhecia: a encefalite letárgica, que matara quase quatro
milhões de pessoas e deixara qualquer coisa em torno de um milhão em estado de catatonia,
ao longo da década de 1920. “Uma noiva na Suíça chegou a dormir no altar”, ela gostava de
contar. Os acometidos ficavam assim por décadas, muitas vezes. Até que quarenta, sim, eu
disse quarenta anos depois, Oliver Sacks chegou a um hospital no Bronx e descobriu que a
música – ah, a música! -, fazia com que muitos catatônicos se levantassem e dançassem!
Tudo por causa de um assistente do hospital, que tocava… piano.
Bem, dona Palma já era uma sexagenária na época e, sem nada que a prendesse por
aqui, a não ser o gato Felício que morava com ela no Edifício Pandora – dona Palma era uma
das moradoras mais antigas -, fez as malas e foi tocar para os catatônicos. Felício ficou com a
vizinha. Alguns meses depois, quando voltou, o gato estava de bigode e barba brancos.
Envelheceu de saudade. Mas Dona Palma chegou tão feliz e revigorada, que o felino
recuperou as cores tigradas de antes. Acreditem se quiserem. Para a centenária, qualquer
coisa podia ser curada com música. Febre, dor de estômago, joelho ruim, mal de amor. E
comprovara isso ao trabalhar com Sacks. Falava desse tempo com muito orgulho, não porque
se achasse importante, mas porque vira sua tese comprovada.
O fato é que quando começou a pandemia no final de 2019, ela passou a tocar mais
horas por dia. Quem olhasse aquela senhorinha de cabeça toda branca e olhos negros como a
noite, não imaginaria o vigor que tinha na ponta dos dedos. Acertava com tanto amor as
teclas pretas e brancas do seu Steinway – que era o mesmo desde os anos 1940 –, que não
havia quem não se emocionasse ou animasse ou ficasse reflexivo, dependendo do repertório.
Desde as primeiras notícias vindas da China, quem cruzasse com ela em elevador, portaria ou
supermercado, ouvia o aviso: “Esse vírus vai tomar o mundo”. A maioria não acreditava –
quem acreditaria? Ela seguia dizendo que seria terrível, mas bom. Que as pessoas seriam
obrigadas a rever valores. O mundo anda muito burro, dizia.
As vítimas do Pandora eram celebradas com o Réquiem inacabado de Mozart, porque
apesar de vidas terem se encerrado, as histórias haviam ficado pelo caminho. Dona Palma
não tinha medo da morte, mas dos desejos que algumas pessoas temem não realizar.
Considerava-se uma felizarda por jamais ter deixado de perseguir qualquer coisa que lhe
falasse ao coração. Quando jovem, nem pensava sobre isso, simplesmente ia. Foi mais velha
que se deu conta de ser assim. Nunca quis se prender a nada, não casou ou teve filhos. O que
não significa não ter amado. Amou. E como. Homens, mulheres, crianças, desconhecidos.
Até muito pouco antes da Covid-19 se tornar uma realidade cruel no Rio de Janeiro, ela
seguia frequentando uma comunidade por semana para tocar para as crianças. Deixou de ir
porque foi proibida. A senhora é idosa, grupo de risco, diziam. Ela respondia que todo mundo
é grupo de risco desde que nasce. Ou você acha que nunca vai morrer? Mas, em algum
momento passou a ser impedida, mesmo. Então, fazia lives. Sim, dona Palma sabia fazer
essas coisas, até que a tecnologia perdeu sua função.
Depois de muitos meses de confinamento, resolveu anunciar as estações para quem
tivesse sobrevivido nas redondezas. Sabia que perder a noção dos dias e das horas seria
inevitável, manhãs e noites se sucederiam sem novidades, depois que o contato com o mundo
se perdera. Como vinha de uma vida analógica, contava os dias num caderno que dividira em
meses. Depois acrescentara o novo ano. No que seria o primeiro réveillon da pandemia, tocou
a dança da fada de açúcar, da Suíte Quebra Nozes, de Tchaikovsky, à meia-noite. Ouviu a
voz de Diana gritando “Obrigada, Dona Palma!”, e sorriu. Em seguida, ouviu batidas em
tetos e assoalhos. E um “Feliz ano novo”.
No dia seguinte, primeiro de janeiro do ano mais estranho que já tinha vivido até
então, escreveu vários bilhetes, que enfiou debaixo das portas dos apartamentos. Era uma
convocação: que os vivos se mascarassem devidamente e se encontrassem ao ar livre. Só
compareceram seu Lindomar e Silvana. Receberam as instruções de dona Palma. Ou se
juntavam ou morreriam todos. Foi ali que começou o projeto da horta. Depois veio Diana.
Um pouco mais tarde, Breno. E, por último, Marina e Miranda, inseparáveis, que já
trabalhavam com Silvana na produção de equipamentos de proteção pessoal, como máscaras,
roupas impermeáveis e afins.
As primeiras sementes e mudas foram fornecidas pela pianista. Além de tocar piano,
sua maior distração era o cultivo de alimento. Quem entrasse no seu apartamento ficaria bobo
ao ver o verdadeiro pomar que escondia na área aberta de seu térreo, onde Felício, quando
vivo, passava a maior parte do tempo, arranhando o pé de limão siciliano. Estava enterrado
num daqueles canteiros. Nem dona Palma sabia mais qual. Virara adubo. Toda vida se recria,
ela costumava dizer. Além do limão, o jardim de dona Palma exibia hortaliças de todo tipo,
também laranja, morango, amora, maracujá e raízes. Gengibre, cúrcuma, batata doce,
inhame… Raiz, quem não tem, precisa criar, era seu lema.
E foi a partir do oásis de vida – com duplo sentido – de Dona Palma, que o Edifício
Pandora se tornou resistência. Não morreriam de falta de amor, cuidado, gentileza,
cooperação. Como uma tribo, sobreviveriam. O contato direto seria restrito, como pedia o
amor à vida. Mas viveriam. Percebeu, desde o primeiro dia, a chama mais forte que pode
inflamar entre humanos – o desejo. Diana e Breno podiam não saber ainda, mas dona Palma
não tinha dúvidas: em algum momento, desafiariam o vírus, a morte, o mundo. Em nome da
vida. E sorria na solidão que sempre a acompanhara: essa dona doida, a vida, sempre acha o
caminho. Não falharia justo agora.
Antes de dormir, sempre pedia mais um dia. Só mais vinte e quatro horas de beleza. A
catástrofe jamais a assustara. A morte também não. Só queria mais um pouquinho de música.
E ar.
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Seu Lindomar acordava todos os dias às cinco e quarenta e cinco da manhã. Fosse
chuva ou fosse sol, pulava da cama em atitude quase mecânica, como se não quisesse abrir
espaço para qualquer sentimento que fugisse à normalidade. Que já não existia mais como
antes. Trabalhava no Pandora desde que viera do Norte, quase quarenta anos antes. Gostava
de pegar no pesado. Homem rústico de alma nobre, não conhecia a preguiça. Trabalhara na
roça da família desde menino, até ser homem feito. Depois da morte dos pais – de fome e de
pobreza, mesmo -, vendeu o que sobrou e comprou uma passagem de ônibus para o Rio de
Janeiro. A esperança está nas cidades, pensava. Na tal da civilização.
Ao chegar na rodoviária, agarrou a malinha pequena e não pensou duas vezes, a
primeira coisa que fez foi realizar seu sonho de criança: conhecer a Princesinha do Mar.
Diante do oceano atlântico, não se conteve. Saiu correndo e mergulhou, de roupa e tudo, sem
se desfazer da própria trouxa. Aprendera a nadar nos rios e açudes da sua terra, mas se
apertou um tanto com as ondas. Mas nem assim se acovardou. Como era boa aquela água
salgada. Encharcado, feliz da vida, deixou o corpo quarar no sol. Teve abrigo na casa de um
primo, que logo avisou que precisavam de faxineiro num prédio bom de Copacabana. E lá foi
ele, confiando na força que tinha nos braços e no fôlego que carregava na alma. Ganhou o
emprego. De lá não saiu mais. Com o tempo, passou de faxineiro a porteiro, de porteiro a
chefe da portaria. Ganhou moradia num apartamentinho apertado nos fundos do prédio, com
vista para a garagem. Conheceu Silvana, costureira de uma moradora, e foi paixão à primeira
vista.
Mulher com H maiúsculo, ele dizia. Casaram-se e apertaram-se no seu cafofo. Não
reclamavam nunca. Passeavam na orla nas folgas dele, mergulhavam cedinho aos domingos,
iam à feira juntos. Quem acreditasse que felicidade e dinheiro andam juntos duvidaria
daquele casal. Não sofriam de falta. Agradeciam sempre. Viviam na cidade maravilhosa, no
bairro dos cartões postais. Ele nem reparava que alguns moradores não lhe davam sequer
bom dia ou estendiam suas sacolas para que carregasse sem olhá-lo nos olhos. Não se
importava. Cada um tem o coração que merece, filosofava.
Quando começou a epidemia na China, assistia ao noticiário com fé de que aquilo
jamais cruzaria fronteiras. Não chegaria ao Brasil. O país não merecia mais um golpe. Até
que pessoas começaram a adoecer. Na vizinhança, na sua terra, no Edifício Pandora. Seu
Lindomar não titubeou. Passou a fazer compras para moradores e pediu que Silvana
costurasse máscara para quem pudesse. Ela não cobrava. Não achava certo. Os dois
distribuíam o que ela produzia no pé das comunidades, para os moradores de rua. Em algum
momento, a mulher caiu de cama. Os condôminos não queriam chegar perto dela. E houve
até quem sugerisse que Seu Lindomar fosse demitido. Quem impediu foi Dona Palma. Onde
é que já se viu botar na rua um homem com a esposa doente. Pagou o teste que, por sorte,
negou que ela tivesse a doença terrível. Foi um alívio. Mas como a vida dá voltas e rodopios,
alguns dos que desejaram a miséria do porteiro, adoeceram. Morreram. E sempre que
chegava uma ambulância, ou alguém precisava ser amparado até o carro para seguir para um
hospital, lá estavam Seu Lindomar e Silvana, estendendo braços, colocando pernas para
dentro de automóveis. Sempre se despediam pedindo que os doentes tivessem fé em Deus.
O tempo foi passando, o prédio foi esvaziando. As televisões pararam de funcionar. A
internet também. Mas Seu Lindomar não deixava de varrer as áreas comuns, de limpar os
vidros, de checar a caixa d’água. “Não podemos deixar o medo ganhar”, sussurrava no
ouvido de Silvana. Um dia, quando lustrava um carro que já não tinha mais dono, Dona
Palma, que molhava seu jardim interno, entregou para ele o mesmo bilhete que botara
debaixo das portas dos moradores. Antes mesmo que ele abrisse o papel, ela o encarou,
decidida: “Vamos trabalhar juntos?”
E foi ali que nasceu a resistência do Pandora. Seu Lindomar quebrou parte da mureta
do jardim de Dona Palma e encaixou ali um portão. Assim, ele podia entrar e jardinar quando
ela não estivesse. Aumentaram os canteiros, plantaram mudas comestíveis, criaram sistemas
de irrigação. Silvana ajudou em tudo, costurou telas de filó para espécies que precisavam de
estufa. Percorreu apartamentos abandonados pelos donos mortos e recolheu cortinas, lençóis,
todo o tipo de artigo que pudesse ajudar na sobrevivência dos poucos que ali haviam restado.
Aos poucos, os outros foram se juntando, tarefas foram sendo divididas, e a sensação de
serem uma família começou a dar contornos de quase felicidade aos dias daquela gente.
Mesmo com a pandemia, com as mortes, com o medo da ameaça que espreitava as
horas de todos, Seu Lindomar pulava da cama e varria. E regava. E limpava. E sorria ao olhar
para em volta e ver que era cercado de amor verdadeiro. Aos sessenta e dois anos, sem filhos,
via seus companheiros de comunidade como um prêmio, desde que perdera tudo lá no Norte,
quase quarenta anos antes: a mulher dos sonhos, casa, família, amigos e uma plantação bem
cuidada. Tudo isso na tão sonhada cidade grande.
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O encontro de Diana com a morte aconteceu no dia 20 de outubro de 2020, quando a
curva da pandemia já estaria supostamente mais suave, ou talvez exterminada. Em tese. No
Brasil, não foi o que aconteceu. Enquanto o mundo dava passos, lentos, é verdade, mas
caminhava em busca da normalidade, Diana estava sem um tostão, há três dias sem banho ou
troca de roupa.
Bailarina e professora de dança, já tinha desistido das aulas virtuais, mesmo que
alunos e alunas entupissem seu telefone de mensagens. Não gostava de não ver o corpo das
pessoas, de não poder tocar neles. Não se dança de longe, pensava.
Eram três e meia da madrugada, e ela estava deitada no tapete empoeirado da sala
havia algumas horas. De repente, sentiu uma presença. Não se assustou, respirou fundo.
Perguntou: “É você”? Ouviu em resposta outra pergunta: “É isso que você quer”? Diana
ergueu o tronco, sentou-se. “Não sei”, disse. E não sabia, mesmo. Só sabia que não vinha
sendo capaz de lidar com nada daquilo. Se a vida fosse daquele jeito para sempre, qual seria o
sentido? Ao mesmo tempo, não tinha coragem de tomar uma atitude, um veneno, ligar o
forno, pular da janela. Deixava as horas comandarem seu estado letárgico. Lembrou dos
catatônicos da Dona Palma. Eles, ao menos, tinham diagnóstico. Ela não tinha nada.
Sentiu um ar gelado na altura do nariz. Encarou o breu da sala. A morte lhe disse que
o que ela queria era alívio, coisa que não podia oferecer. Diana perguntou se morrer não seria
um livramento. Mas as morte quis saber primeiro do que ela queria se livrar. Da dor. Da
solidão. Do medo. Foram os três pensamentos que passaram pela sua cabeça. “Todas coisas
que podem ser combatidas em vida. A única coisa que eu tiro de quem eu toco é o ar”.
E assim como surgiu, a presença desapareceu. Diana chorou, chorou, chorou, sentiu
saudade dos pais, da infância, da juventude, do ex, de todos os ex, do filho que não teve, do
palco, dos músculos sendo estendidos e recolhidos em movimentos de dança. O corpo. O
corpo é a nossa única salvação. Porque se a mente é traiçoeira, o corpo é cristalino. Tem
tensão? Dói. Inflamou? Dói. Cansou, também dói. É a matéria da matéria, a coisa mais santa
que se pode carregar.
Num movimento brusco, tirou toda a roupa imunda, estalou todas as juntas, mexeu
cada pedaço de carne revestido de pele. Arrastou a mesa de jantar e subiu nela para pegar
uma caixa lá em cima, no alto de uma estante, atrás de livros que foi jogando no chão, sem
pensar que em tempos como aqueles, ninguém podia precisar de atendimento médico. Abriu
a caixa e pegou o par de sapatilhas de ponta que escondera tantos e tantos meses antes.
Esparramou os móveis, enrolou os tapetes e dançou. Dançou nua e louca, experimentando
uma liberdade que desconhecia. Sem música, sem nada, só a própria respiração ofegante, a
força das partes duras da sapatilha em contato ritmado com o assoalho.
Como num balé ensaiado, as teclas de Dona Palma começaram a dedilhar O Lago dos
Cisnes, às quatro e dezessete da madrugada. Escuro ainda, o dia nascia dentro de Diana.
Dançou com vigor a coreografia que sabia de cor desde a adolescência. Viu os próprios
músculos saltando sob a pele, sentiu o suor escorrendo pelas coxas, pela nuca, pelos fios de
cabelo que grudavam no rosto. Que alegria. Que alegria. Que alegria.
Dançou até cair de exaustão, até saber que seus dedos não mais treinados sangravam
dentro da sapatilha, até se dar conta de que a morte lhe trouxera vida. Quando suas costas
encontraram o piso de madeira, o peito subindo e descendo de ar e êxtase, agradeceu em
silêncio. Silêncio absoluto, porque até o piano de Dona Palma cessara.
Estava viva! Uma gargalhada fenomenal encheu a sala e ela viu pela fresta da janela
os primeiros raios do sol de primavera. Jamais imaginaria que quase um ano depois ainda
estaria ali, no Edifício Pandora, vivendo como se o mundo fosse feito de oito pessoas.
Mas um dia, com certeza, voltaria a sentir o calor de um abraço.
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Breno ia para debaixo do chuveiro de madrugada, sempre que precisava chorar a
morte da mulher ou outra dor derivada. Não queria que Felipe visse, ouvisse ou sofresse.
Além do inevitável. Mal sabia ele que o menino ouvia o barulho da água, andava pé ante pé
até o banheiro, via a sombra do pai e, pelo movimento de corpo, sabia que não devia
incomodar. Voltava para a cama, tirava a foto da mãe de baixo do travesseiro, botava sob a
coberta e fechava os olhos tentando dormir. Mas só apagava de verdade depois que o pai
também se recolhia.
Breno e Ligia comemoraram 10 anos de união na véspera da viagem dela para a
China. Mais especificamente, para Whuhan. Mais especificamente ainda, para um ciclo de
palestras sobre nanoclusters na Universidade de Whuhan. Breno não conseguia entender
exatamente o que eram nanoclusters, mas gostava de ouvir a mulher repetir siglas e números
como quem recita Shakespeare. Ele tocava bandolim. Fazia parte de um trio que se
apresentava na Lapa, em lugares alternativos, mas também na Sala Cecília Meirelles, eventos
em que vestia até paletó.
Os dois habitavam mundos muito diferentes, mas haviam se encontrado
espiritualmente no Tibete, doze anos antes, no Mosteiro de Gyantse. Namoraram por dois
anos e resolveram morar juntos. E naquele aniversário de 10 anos de união, justamente em
dezembro de 2019, o plano era que Breno e Felipe fossem ao encontro de Lígia em Chengdu,
cidade dos Pandas, paixão do menino, para depois virarem o ano no Tibete. Nada disso
aconteceu. Lígia embarcou no dia cinco de dezembro, quando o primeiro caso identificado de
Covid-19 ainda não fora reportado. Enfurnada na universidade, ouviu alguns relatos esparsos
sobre a “nova gripe”, mas não se abalou. Antes que terminasse a ronda acadêmica, começou
a ter sintomas estranhos, mas não contou a ninguém. Nem mesmo ao marido. Seguiu sua
agenda, medicando-se por conta própria, até ser encontrada sem vida no dia 21, no quarto do
hotel em que se hospedara. Seria uma data importante para ela. Lígia falaria para um
auditório lotado de cientistas do mundo todo.
Breno recebeu a notícia enquanto fazia as malas dele e do filho para viajarem no dia
seguinte. Enquanto Felipe brincava de se esconder debaixo da pilha de casacos, Breno
encarava a dor mais aguda que já sentira na vida. Não era só o fato de perder a mulher. Era
perder a mulher a 16632 quilômetros de distância. Era perder a mulher a 16632 quilômetros
de distância, sem um diagnóstico preciso. Era perder a mulher a 16632 quilômetros de
distância, sem um diagnóstico preciso, estando a 48 horas de encontrar com ela. Era perder a
mulher a 16632 quilômetros de distância, sem um diagnóstico preciso, estando a 48 horas de
encontrar com ela, sem poder ver o corpo. Sim, não pôde. Àquela altura, tudo ainda muito
nebuloso com a demora da China em relatar oficialmente o primeiro caso de Covid-19, o
corpo de Lígia não fora liberado. Breno cogitou ir até lá. Mas e Felipe? O que fazer com o
filho? Entregar para os avós paternos? Os pais de Lígia não eram vivos. Os seus,
recomendaram que esperasse. De que adiantaria ir se a mulher já estava morta?
O natal de Breno e Felipe foi triste e angustiante. A virada de ano, pavorosa. Depois
de muito debate, da falta de informações, Breno decidiu ir para Whuhan. Fosse como fosse,
não sairia de lá sem Lígia. Mas, novamente, às vésperas do seu embarque, a região foi
fechada. Ninguém entrava, ninguém saía. Lígia jamais voltou ao Brasil para ser enterrada. Os
pais de Breno também morreram de Covid-19. Até aquele momento, e até agora, ele
escapara.
Numa das madrugadas em que abria o chuveiro sobre o corpo para tentar lavar o
torpor em que vivia, ouviu pancadas no teto e imaginou, primeiro, que o apartamento de cima
tivesse sido invadido e que alguém quebrava móveis sobre a moradora. O que fazer? Chamar
a polícia? Àquela altura, o Rio de Janeiro era um mar de infectados, uma espécie de cenário e
figuração de The Walking Dead. Todo carioca sabia que a cidade não suportaria o vírus. Que
o Brasil não acolheria tantos doentes. Era tão duro conhecer a realidade. O que sobraria
depois da pilha de mortos, do descaso, da tristeza, da pobreza, da raiva? O que ele poderia
fazer pelos conhecidos, desconhecidos, pelo cara do outro lado da rua, pela caixa do
supermercado, por milhares de famílias sem água e sabão para o mínimo da higiene?
O ano de 2020 já ia longe, e muito longe do período previsto para o fim do caos. Não
queria pensar na vizinha de cima sendo espancada por algum brutamontes, provavelmente
doente, usando a força para espraiar a sua revolta. Gritou instintivamente, mas abafou a voz
com a água que caía do chuveiro, porque não sabia mais se seria capaz de mentir para Felipe,
dizendo que tudo acabaria bem. Só quando ouviu os acordes do Lago dos Cisnes, pelos dedos
de Dona Palma, lembrou-se de uma imagem que não sabia mais por que localizar no tempo,
da moça que morava no andar de cima, entrando no prédio de coque no cabelo e malha de
balé, um par de sapatilhas pendendo para fora da bolsa, quando ele saía de carro para levar
Lígia ao aeroporto. Seria isso? Seria possível que alguém dançasse naqueles dias? Àquela
hora? Que mulher louca.
Mas por alguma razão inexplicável, fechou a torneira, sentou no chão do box e ficou
ouvindo a música sendo impactada pelo ruído rústico das prováveis sapatilhas no assoalho
sobre sua cabeça. No dia seguinte, voltou a tocar bandolim, absolveu Felipe das aulas online
e começou a ensinar música ao filho. Não fazia ideia de que mundo encontrariam lá fora
quando aquilo tudo acabasse – se acabasse. Mas, com certeza, o que reconecta o homem ao
impalpável seria muito mais necessário do que o bê-á-bá da razão.
Quando se juntou ao grupo de resistência do Pandora, reconheceu Diana. Sem que ela
entendesse, agradeceu. E, talvez por pressentir o perigo, manteve-se longe dela meses a fio.
Até o dia em que Dona Palma designou que fossem juntos à rua.
#
Desde que se entendiam por gente, Marina e Miranda eram unidas. Gêmeas não
univitelinas, não era a semelhança física que as aproximava, mas a parecença de almas.
Talvez fosse culpa dos genes, mas o fato é que, já bebês, eram irmãs. Sim, eram mesmo
irmãs, saídas da mesma barriga, mas também de segredos e confissões. A primeira pessoa a
saber que Miranda não se ajustava ao próprio gênero, foi Marina. Eram ainda crianças e
Miranda estava cantando na frente do espelho, fazendo uma imitação de Raul Seixas quando
viu a irmã na porta do quarto, e parou. Mas Marina sentou no chão e pediu que continuasse.
Passou a ser a grande diversão das duas. Marina incentivando e produzindo os figurinos
masculinos de Miranda.
Adolescentes, saíam juntas e tinham até um esconderijo no guarda coisas do prédio,
onde malocavam as roupas que Miranda trocava assim que saía da vista dos pais. Mas, apesar
da cumplicidade com a irmã, Miranda foi ficando cansada de viver duas realidades tão
distintas. Batom de dia e gravata sempre que possível. Aos 21, maioridade atingida,
aproveitou a hora do jantar em família e sentou-se à mesa trajada como gostava. O pai logo
estranhou. “Tem baile de carnaval?” Perguntou, fazendo graça. Miranda nem piscou. “Não.
Tem eu de verdade, papai.” A mãe não disse palavra, o homem deu um soco na mesa e
bradou não querer aberrações debaixo de teto pago por ele. Miranda deu meia volta, pegou no
quarto as poucas coisas de que gostava, deu um beijo na testa da mãe e disse: “Eu te amo.
Mas não posso mais mentir por vocês.”
Dormiu na casa de um amigo. No dia seguinte, acordou com Marina do seu lado,
malas também. Viveriam juntas, dariam um jeito. Um dia, os pais entenderiam. Ou não.
Marina vendeu o carro e alugou uma casa de vila num bairro mais afastado e barato. Ela era
estilista, Miranda era designer. Moraram na casinha do Grajaú por dez anos, aos trancos e
barrancos criaram uma marca de roupas, a M & M. Depois de muito trabalho, muito esforço
e muita união, deu certo. Abriram uma loja em Ipanema e ficaram badaladas. Àquela altura,
Miranda já se vestia como queria. Tinha uma namorada, a Julia, que se dava muito bem com
Pércio, namorado de Marina.
No final do expediente de uma terça-feira de inverno, a mãe apareceu na loja. Não
pediu desculpas, não justificou o marido. Comprou muitas peças de roupa, insistiu em pagar,
abraçou as filhas e disse que nada era mais importante que o amor de mãe. Passaram a se ver
com frequência. Quando o pai das meninas morreu, morou um tempo com elas. Não
aguentava o apartamento sem o homem com quem vivera tantos anos. Até que comprou um
dois quartos no Edifício Pandora. Não queria importunar a vida das moças. Frequentavam-se,
jantavam juntas. Não, ela nunca quis conhecer Julia. E, por fidelidade, preferiu não se
relacionar com Pércio. Adoeceu. Não, não de Covid-19. Teve câncer. As filhas se mudaram
para o Pandora para cuidar da mãe, que morreu amada e tranquila, como deve ser.
Marina e Miranda decidiram morar ali, como se prestassem uma homenagem.
Mudaram a decoração, mas mantiveram algumas peças que haviam marcado a vida familiar.
Depois de três anos instaladas, Miranda decidiu que era hora de ser quem era de fato.
Completamente. Começou a fazer tratamento hormonal, e tudo o mais necessário para a
resolução mais importante da sua vida. Marcou a cirurgia. Poucas pessoas não olhavam torto
para ela no edifício. Entre elas, Seu Lindomar e Silvana.
Um mês antes do dia em que realizaria sua vontade mais profunda, os hospitais da
cidade entraram em colapso. O cirurgião foi vítima fatal do novo coronavírus. E Miranda viu
seu mundo desmoronar. Julia também faleceu. Pércio fugiu para o interior de Goiás. Quis
levar Marina, mas ela se recusou a ir embora sem a irmã. Miranda estava prostrada, não
queria sair da cama, tomar banho, nada. Não queria mais viver. Marina fincou pé, alimentou,
deu colo, costurou, fez o que pôde. O mundo foi entrando em colapso e ela se desesperou.
Não era possível que a vida pudesse ser tão injusta. Que quando todas as conciliações
pareciam possíveis, fosse tarde demais.
Foi Silvana quem trouxe a vida de volta à casa das irmãs. A demanda por máscaras e
roupas para profissionais de saúde cresceu demais e ela bateu na porta das M & M pedindo
ajuda. Transformaram o apartamento em estoque, buscaram tecnologias para melhorar a
produção, e, aos poucos, Miranda foi enxergando a luz. E num dos últimos dias em que ainda
se ia à rua, as três foram a um hospital público para distribuir sua produção. Foi ali que
Miranda viu uma mulher como ela sair disfarçando o rosto inchado de chorar, assoando o
nariz na manga da camisa masculina. Afastou-se das suas companheiras e foi oferecer um
lenço à moça. Ela se esquivou, arisca, instintiva, imaginando que sofreria algum tipo de
agressão. Ao perceber que era ajuda, olhou profundamente nos olhos de Miranda, agradeceu
e se afastou. Miranda jamais soube se aquela mulher estava sentenciada à morte ou se perdera
alguém que amava. Mas decidiu, ali, que durasse o tempo que durasse aquele vírus terrível,
resistiria. Porque estaria viva e forte quando o mundo pudesse se tornar um lugar melhor.
Hoje, tinha a certeza de que o que existia no Pandora era a realidade. A humanidade
se reinventaria, e ela faria parte dessa reinvenção.
#
Era dia de festa no Edifício Pandora. Dona Palma nem desconfiava, mas seus
companheiros de mundo novo estavam preparando uma surpresa. Ao longo de semanas,
Diana, Breno, Seu Lindomar, Silvana, Marina e Miranda tramaram a homenagem. Não é todo
mundo que completa cento e cinco anos de vida. Muito menos com a serenidade de Dona
Palma. A felicidade de Dona Palma. Não foi fácil combinar tudo. Viviam isolados,
encontravam-se só mesmo nas funções da horta – que era o ambiente da pianista. Ou em
duplas, nas saídas esporádicas.
Numa delas, Seu Lindomar conseguiu uma partitura de Em Um Mercado Persa, de
Albert Kételby, numa antiga loja de música de Copacabana, e deu para Breno, que metera na
cabeça que tocaria a peça para Dona Palma no dia do aniversário. Ela costumava tocar em
looping nos dias mais escuros. Fosse por nuvens no céu ou nas mentes. Breno ensaiava de
madrugada, dentro do quartinho de tralhas de seu apartamento, que tinha tratamento acústico
desde quando se apresentava. Havia tempos que não frequentava aquele ambiente.
Às vezes, tinha a impressão de ouvir Diana dançando enquanto estudava, mas achava
que era loucura da sua cabeça. Não era. Em Um Mercado Persa fora composta naqueles
outros anos 20, os mil e novecentos. Publicada em 1921, pareceu a ele o encaixe perfeito para
a ocasião, com seu imaginário de camelos, malabaristas, serpentes e princesas. Uma
paisagem nada ocidental para quebrar a vista de destruição que tinham das janelas do prédio.
Dona Palma estava fazendo seus exercícios respiratórios antes de dormir quando teve
a impressão de ouvir sons que não se encaixavam na rotina. Quando chegou no jardim, não
acreditou no que viu. Todos mascarados, enluvados, as árvores e canteiros iluminados por
luzinhas de natal improvisadas, um bolo em forma de piano, Breno com seu bandolim, Felipe
acertando uma batida de tampas de panela como se fossem pratos. Só não chorou porque
sorriu demais. O sorriso se transformou em gargalhada e ela quis muito poder abraçar aquela
gente, que hoje era, não só a sua família, mas o mundo em que vivia. Que beleza era o ser
humano!
Dona Palma correu para o piano. Os dedos salpicaram as teclas como se elas tivessem
pimenta, bem do jeito que gostava, vivaz, picante, como um século mais meia década deviam
ser. Breno silenciou assim que ela começou a tocar. No que percebeu, Dona Palma
interrompeu a própria alegria e olhou para ele, uma batida de tampas de panela ressoando
ainda. Por que parou? Parou por quê? Jamais dispensaria o auxílio luxuoso das cordas de seu
vizinho. Animado pela primeira vez em tempos, Felipe deu outra chacoalhada nas tampas e
encarou o pai, que percebeu todos os olhos nele e voltou a tocar. Mais para se livrar da
expectativa alheia do que por vontade, propriamente. Não se via à altura do talento de Dona
Palma. Era só um trovador.
Assim que todos desviaram dele a atenção, olhou para Diana e pensou que ela deveria
dançar. Mas não teve coragem de pedir. Também não teve vontade, exatamente. De certa
forma, aquilo que imaginava que acontecia – que ela dançava quando ele ensaiava – era
quase como um segredo entre eles. E se fosse mentira, ilusão produzida pelo seu desejo,
preferia não saber. Assim que os olhares se cruzaram, Diana desviou o rosto. O tamborim que
tocava dentro dela toda vez que se encontravam, ou mesmo quando dançava para ele,
sozinha, no seu apartamento, era instrumento proibido naqueles tempos. Precisava domar o
mar de sensações que disparavam pelo corpo toda vez que queria ser tocada por Breno. Na
verdade, dançava por isso. Dançava para suar a vontade.
Depois do mercado persa teve parabéns. E um abraço imaginado – certamente por
todos. Às vezes parecia a Dona Palma que aquele tipo de abraço era mais forte do que os de
antigamente, em que corpos se tocavam. No mundo pré-pandemia, quem lembrava que o
porteiro merecia o calor do condômino? No melhor dos cenários, educação e até carinho.
Mas à distância, assim como agora. Só que agora, era verdadeiro o desejo de agradecer, olho
no olho, mão na mão, não pelos serviços prestados, mas pela existência daquela pessoa. Dona
Palma achava que, por mais estranho que parecesse, o vírus tornara os humanos mais
humanos. E tinha certeza de que o que acontecia ali, devia estar acontecendo também em
qualquer lugar em que existisse a resistência da vida. O amor, finalmente, à custa de tanta dor
e sofrimento, podia aparecer cru, limpo de cultura, isento da pseudo-normalidade em quem se
vivia antes. Ficou feliz, feliz como quando se juntara a Oliver Sacks, com aquele aniversário.
Estava mais viva do que nunca. Mas gente do que sempre.
A festa foi emocionante e acabou durando mais do que devia. Quando perceberam, o
dia já ia raiando e não era seguro que estivessem debaixo de céu aberto. Despediram-se com
a certeza absoluta de serem uma família. A verdadeira, que une por laços mais firmes que o
sangue. Breno pendurou o bandolim no ombro, e pegou Felipe no colo, não quis acordar o
menino que dormira sobre travesseiros de tampa de panela. Deixou escapar um último olhar
para Diana, que, sem se saber vigiada, sorria diante da imagem do homem com seu filho e
seu instrumento. Praticamente um mambembe mascarado. Foram todos deixando o jardim de
Dona Palma de alma cheia. Antes que Diana se fosse, a pianista fez sinais para a moça:
dedinhos dançando sobre o tampo do piano. Um sorriso e mais nada.
Logo que chegou em casa, depois de colocar Felipe na cama, Breno se trancou no
quartinho. Não, não tocou imediatamente. Primeiro, retirou um pedaço do tratamento
acústico da parede, revelando um buraco de encanamento. Ali, antigamente, era um banheiro.
Que virara seu quarto de entulho e de estudos quando Felipe apareceu na barriga de Lígia. O
bebê precisaria um quarto. O casal não precisava de um lavabo. Breno se acomodou com o
bandolim bem pertinho do furo. Era perigoso deixar um “túnel” aberto para o vírus? Era. Mas
talvez fosse mais perigoso silenciar o desejo.
No andar de cima, Diana ouviu os primeiros acordes tocados por Breno e ficou
confusa. O som parecia mais próximo. Percebeu onde ele soava mais forte. Abriu a porta de
seu lavabo, tirou a roupa e dançou pela sala. Para Breno.
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Desde o aniversário de Dona Palma que Breno e Diana conversavam de madrugada
pelo buraco do encanamento. Não tiravam a máscara para falar, mesmo querendo muito
sentir o hálito um do outro. Criaram uma espécie de ritual: ele tocava alguma coisa, ela
dançava, depois “se encontravam” para debater o espetáculo. Breno contava o motivo da sua
escolha da música, ela detalhava os passos da coreografia que elaborara. Como era bom
conversar! Pela primeira vez, Diana sentiu falta do celular. Queria poder gravar sua dança,
queria que ele visse. Mas Breno imaginava tudo. Quase podia tocar nos músculos dela.
Falavam muito sobre os planos perdidos no passado, até que começaram a verbalizar
o que seriam os planos de hoje. Subir num palco, tocar ou dançar para uma plateia inerte…
nada disso parecia fazer qualquer sentido. Queriam fazer arte sem ingresso, sem fronteiras. A
experiência no Pandora ensinara uma espécie nova de encontro: a comunhão. Diana lembrava
dos dias de colégio de freira na infância. Não entendia muito bem o sentido daquilo que tinha
este nome: o momento em que o padre oferecia a hóstia. Não se sentia ligada àquelas pessoas
na capela escolar. Nem ao padre. Nem mesmo à ideia da existência de Jesus. Mas ali, naquele
edifício semiabandonado, convivendo mascarada à distância com aquelas poucas pessoas,
entendera exatamente o que deveria sentir nas missas impessoais de pequena.
Breno não tinha qualquer formação religiosa. Era filho de pais nada místicos. Talvez
por isso tivesse buscado algum encontro com a fé tantos anos antes, quando conhecera Lígia.
Falou muito da sua relação com a mulher, sempre com uma espécie de culpa, porque, no
fundo, tinha a sensação de nunca ter sido o parceiro que ela merecia. Mas Diana lembrou a
ele que ninguém pode se responsabilizar pelas escolhas alheias. Parecia a ela que Lígia era
uma mulher inteira. Tão inteira que decidira morrer sozinha, sem antecipar o sofrimento do
marido e do filho. Foi aí que tocou no ponto nevrálgico de Breno. Ele não se conformava
com a solidão que a mulher certamente vivera nos últimos instantes. “E quem disse que não
era exatamente isso que ela queria?” Diana arriscou a pergunta. Ele ficou em silêncio. Nunca
tinha pensado nessa possibilidade. Sentiu um alívio estranho, uma espécie de absolvição.
Diana brincou que bastava então que rezasse um Pai Nosso e uma Ave Maria.
Instintivamente, ele respondeu que preferia poder dar um abraço nela.
Naquela noite, nenhum dos dois disse mais nada. Cada um no seu lavabo, dormiram
juntos. Quando ela acordou, respirou fundo. Deve ter deixado escapar um ruído qualquer,
porque ouviu, baixinho, um bom dia. Sorriu. Naqueles tempos loucos, era como se
estivessem na mesma cama. Teve vontade de fazer ovo quente para ele. Seu ovo quente era
espetacular.
A partir dali, tiveram muitos momentos íntimos. Bem mais íntimos do que os
pequenos shows à distância ou as conversas mais ou menos profundas. Era como se ele a
tocasse. Era como se ela o beijasse. Era bom. Tão bom, que a necessidade de que tudo o que
era imaginado se tornasse realidade foi crescendo em ritmo avassalador.
“Você tem vontade de sair daqui?” Ela perguntou.
“Do Pandora?”
“Isso.” Diana parecia decidida. Não sabia exatamente de quê.
“Para quê?”
“Para ver se tem mais gente por aí.”
Silêncio.
“Para ficar sozinho comigo.” Ela teve a coragem.
Depois de alguns segundos de angústia para ela e medo pra ele, Breno disse, num fio
de voz que reverberou pelo metal até fazer sentido.
“Tenho. Muita.”
Mais não disseram. Aninhados, cada um na sua cama improvisada, corações
disparados, os dois sabiam que tinham dado um passo em direção ao abismo.
Mas qual o sentido do abismo sem o salto? Para que ter asas se não há voo?
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O encontro combinado não aconteceu. Pelo menos, não como eles esperavam. No dia
marcado, quando Breno deixava Felipe no jardim de Dona Palma para que desenhasse as
árvores sob a supervisão da pianista, o som de uma sirene desviou as atenções. Diana descia
pela escada de serviço do prédio, tentando respirar baixinho para não ser ouvida. Seu
Lindomar cozinhava enquanto Solange tirava sementes de alguns tomates, para um novo
canteiro. Marina e Miranda liam, cada uma num quarto. O barulho quase ensurdecedor se
aproximava, e todos seguravam a tentação olhar pela janela, pelo basculante, furo no
concreto, para entender o que se passava. A sirene parou. Todos congelaram.
Uma voz ecoou através de um megafone. Anunciava algo muito comum antes da
pandemia: ovos. Mas não eram trinta ovos a dez reais, ou em qualquer moeda. Eram ovos
gratuitos. Quem primeiro teve coragem de averiguar o que acontecia foi Dona Palma. Abriu
uma fresta da janela e viu, lá embaixo, um caminhão aberto. Na boleia, rodeado de toneis de
ovos, um homem proclamava a distribuição. Girava o pescoço na direção dos prédios,
esperando ver um rosto para o qual pudesse sorrir debaixo da máscara. Foram os olhos de
Dona Palma que ele encontrou. Mirou o megafone na direção dela e disse: “O novo tempo
chegou.” Logo depois, tirou a máscara. Ela pôde ver, mesmo de longe, quase todos os dentes
daquela boca. Abriu mais um pouco da janela. Quem era aquele arauto de boas novas? Ou
seria um emissário do apocalipse, desejando extinguir de vez a humanidade? Mas ele abriu os
braços e disse: “É verdade.” E ela acreditou.
Rafael era morador de uma das comunidades de Copacabana. Estudante de
enfermagem, sobrevivera à Covid-19 cuidando de seus pares que não tinham saneamento
básico. Enquanto a doença grassava e matava tanta gente que ele conhecia, amava, até
mesmo odiava, ele rezava do seu jeito, pedindo para não esmorecer. Digo que rezava do seu
jeito, porque não tinha religião. Às vezes, conversava com a lua, às vezes, com as paredes.
Falava dos muros que tinha precisado transpor ao longo da vida. Gritava olhando para o céu
que não era certo aquela gente sofrer tanto para morrer quando já sofrera tanto para viver.
Não desistiu. Lutou, salvou, chorou. E criou galinhas. Sabia que a comida ficaria cada vez
mais escassa. Mas de fome não morreria. Nem ele, nem quem estivesse perto dele. E quando
fosse possível, distribuiria. O bem a gente não guarda só para si; o bem a gente espalha, era
seu pensamento.
Até que quase dois anos depois do começo da pandemia, ele se pôs à prova. Tirou a
máscara, as luvas, a roupa de escafandrista, e saiu abraçando todos os sobreviventes da
comunidade. As pessoas se assustaram. Mas ele as acalmou. Até onde sabiam, ninguém ali
tinha o vírus original. Ninguém adoecera. E os assintomáticos? Ele testara. Levara uma
remessa para a comunidade. Sim, roubara. Mas só quando os hospitais viraram prédios
abandonados. É verdade que o vírus sofrera mutações, e por isso ninguém cogitava a
possibilidade de andar sem proteção. Mas Rafael guardara um kit de teste. Pedia nos seus
momentos de oração para saber a hora certa de usá-lo. Sessenta dias antes de descer ao
asfalto fazendo o que prometera, percebeu que a luz do sol estava diferente. Olhou para o
céu e viu – viu, mesmo – um halo lilás em torno do astro rei. Soube que era a hora. Testou-
se. Livre. Limpo. E teve certeza de que, assim como ele, outros estariam. Se o mundo
estivesse no prumo certo, todos. Então saiu abraçando, tocando, sentindo os outros corpos,
tão distantes por tanto tempo. Se houvesse alguém doente, ele adoeceria. Não adoeceu.
Aos poucos, os moradores foram tomando coragem e tirando as máscaras, as luvas,
trocando apertos de mãos. Quinze dias depois, todos bem. Vinte dias depois, todos bem.
Trinta dias depois, todos bem. Então passaram a promover pequenos encontros com música e
comida. Quinze dias depois, todos bem. Trinta dias depois, todos bem. Sessenta dias depois
do primeiro abraço desprotegido, Rafael entrou no caminhão dirigido por Francisca, sua irmã,
e os dois foram dar as boas vindas e ovos cem por cento orgânicos a quem quer que tivesse
resistido. Mesmo com medo, todos no Pandora receberam, gratos, a oferta. E confiaram em
Rafael. Afinal, aqueles tantos e tantos meses aprendendo a amar à distância, deram a eles a
certeza de que a humanidade tinha cura. E o remédio era o amor.
A virada de 2021 para 2022 foi só alegria. Do Pandora, foram todos à festa de Ano
Novo de Rafael, lá no topo do morro, com vista privilegiada para a praia de Copacabana. Não
houve fogos de artifício. Mas de afeto. Abraços, beijos, gargalhadas, copos e talheres
compartilhados. E quando deu meia-noite, assim, como se não tivessem passado por agruras
e dissabores, Diana puxou Breno para perto e deu nele o melhor beijo na boca de sua vida.