A moça, pobrezinha, era frágil e violeta. A flor. Singela e cabisbaixa. Como a flor, que é uma graça e não requer muitos cuidados, Violeta (agora sim ela, a moça, que também se chamava Violeta), trabalhava de fonoaudióloga. Logo ela, que se comunicava tão pouco. Violeta usava sapato baixo e estima baixíssima. O cabelo sempre preso, ia para o consultório em Ipanema (veja bem, para se garantir boa clientela, endereço é fundamental) e, mesmo escondendo de si mesma, esperava por um regador na sua vida. Alguém que fizesse chover em dia de sol. Alguém que pudesse pegar pela alça.
Marlon, príncipe do cinema travestido de médico doutor, apareceu no seu jardim, consultório de paredes verdes – cor da medicina e da esperança – as quatro e quarenta e quatro da tarde de uma quarta feira dia quatro de dois mil e quatro, mês abril, mês quatro. Mesmo não acreditando em baboseiras além da laringe e do aparelho vocal, era quatro demais para alguém de vinte e quatro anos, tão perto do mês cinco, maio, mês das noivas. E mães. Marlon tinha a língua presa, mas era robusto como um touro, empertigado como o milho e gentil como cachorro bem treinado. Mas a ressalva que precisa ser feita é que, na verdade, o que chamamos de língua presa nem sempre o é, mas simplesmente uma projeção frontal da mesma, a língua, resultado de flacidez (conheço flacidez muscular, mental e até emocional, mas da língua?!) ou hipotonia: “redução da tensão em qualquer parte do corpo” (dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0).
Sem me preocupar com dados técnicos de tão somenos importância para o coração, o relevante do caso púrpura é que o problema não era articular, mas da falta de desenvolvimento da musculatura orofacial, “relativo à face e à boca; produzido pelo movimento da face e da boca ao mesmo tempo” (dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0, mais uma vez) e tinha intimidade bastante com as funções de sucção, mastigação e respiração. O fato é que Violeta, florzinha de tão pouca água e muita sombra, entre consultas e exercícios, perdeu-se em Marlon. E a língua do príncipe desencantou em seus lábios e outras partes do corpo durante sessão terapêutica da fala e da comunicação mais primitiva do ser humano. Apaixonaram-se.
Entre subidas para Petrópolis e esticadas a Cabo Frio, Violeta acabou perdendo a clientela e o consultório em Ipanema. Entregue aos amores e promessas do verdugo, não compreendia as viagens durante a semana, com tantas promessas de cruzeiros de natal, réveillon em Cochabamba, sempre desfeitas de véspera por motivos de força maior. Muito maior, segundo ele, trabalho. Mas Violeta achava bom que ele ao menos sempre dava um jeito de comer o peru no começo da tarde, brindar com champanhe nacional antes e depois do amor entre os corpos, para depois partir, descabelado, para cirurgia, atendimento de urgência – apendicite, pancreatite, urticária ou demência. Nada mais bonito que salvar uma vida.
Um dia, toca o celular de Violeta, “alô, quem fala”? “Violeta Cristina”. “Violeta, aqui é Rosa Duarte, pedagoga”. “Sim”? “Você é fonoaudióloga, é isso”? “Sou, quer dizer, não ando clinicando muito ultimamente”… “Tudo bem. Escuta, vou usar de uma quebra de ética, você me desculpe, mas é realmente muito importante”. “Pois não”, a sempre gentil Violeta. “Por acaso, Marlon Brando Pereira é seu paciente”? O silêncio de Violeta foi o começo da tempestade. “É”? “Posso saber o motivo da pergunta”? “Simples, o filho dele”… Violeta murchou, caiu no chão, o telefone em pandarecos, do outro lado da linha o tututu clássico, que nem existe, mas é usado em cinema e tevê para caracterizar a queda na ligação. Começou a chover na cabeça de Violeta. No coração de Violeta. Mas os pingos eram de tempestade, não de regador. Eram pingos de tormenta, desgraça em alto mar, os fios se desprendendo involuntários do cabelo. Respirou um, dois, três. Levantou. O celular, pegou do chão e pressionou send no número da última ligação recebida. Caso esclarecido: Rosa era outra, médica também, cuidando de outra especialidade do paciente: mulheres amantes com nome de flor, profissionais de área médica. Soube de Margarida, ginecologista, onde ele fora tratar por tabela de problemas da reposição hormonal da cunhada; Camélia, dentista com quem rearranjava a dentição em consultas regulares do aparelho móvel; Petúnia, acupunturista que o livrava do estresse e do cigarro; além de Gardênia, cheirosíssima, mulher de papel passado, aromaterapeuta. Desgraçado! Tão vagabundo quanto um pôster do Fábio Assunção.
Violeta ouviu subir e descer o sangue nas veias. Inflou e desinflou os ventrículos. Depois foi para a cozinha. Preparou o pato com laranja. Resfriou o vinho à temperatura adequada. Tomou banho e se perfumou. Vestiu lingerie de pornografia e foi para a sala. Abriu a porta para o galã, que aparecia de buquê de flores e champanhe. Ficou roxa, a Violeta, com vontade de tapa na cara. Em vez disso, beijou de língua, enroscou pernas e usou as unhas. Estava quente, fervendo, com vontade de tudo e muito mais. Estava mudando de flor. Esparramou champanhe por todo Marlon e ele, cafajeste que era, surpreso com o tumulto daquele arbusto desconhecido, entregou-se e prometeu. Ajoelhou-se e disse que amava. Chorou, rendido. Ela, Violeta em mutação, esperou que o amor acabasse e os corpos murchassem, para então sair da sala dizendo esquentar o pato e voltar com um envelope no bolso. Fotos de flores, com telefones, CRMs, endereços e provas cabais. Homem, Marlon negou. Disse não, é mentira. Ela, então, esfregou-lhe a certidão de casamento no rosto de língua presa. Marlon ceceou. E ela, do outro bolso do roupão, tirou mais uma coisa bem feminina: arma calibre moça. Antes de apontar, mudou de cor. Ficou verde e inflamada, qual botão de Maria-sem-vergonha, no ponto em que qualquer um que passe e encoste na pré-flor, explode o bojinho de sementes, que derrama as futuras flores pelo chão. Tal foi o efeito da transformação naquela violeta, flor cabreira e bonitinha, que depois de explodido o botão verde, ficou vermelha e viçosa, e apertou o gatilho contra o varão, agora espiga. Descabelado de medo e de morte.
Caso encerrado, homem morto, feito em picadinhos e transformado em bife para os necessitados do caminho até o recuperado escritório em Ipanema, Violeta parou no cartório e provou por a mais b, que o nome a constrangia, contando o caso das amantes desabrochadas do ex-namorado e paciente. O escrivão carimbou: Maria Bomba Sem Vergonha de Explodir. Nome e sobrenome. Era assim que se chamava agora, apesar de os especialistas de leis e assinaturas não compreenderem mudança tão estranha, e mesmo a manutenção das pétalas no nome próprio. Ela explicou: “Maria-sem-vergonha dá em todo lugar. Tem semente farta e colorida. Não precisa de paisagem de cinema e toma logo todo o canteiro. Agora sou Maria. Quero ser sem vergonha. E desejo explodir toda vez que estiver de saco cheio, de língua presa. Boa tarde.”
Dali para frente, nunca mais foi a mesma. Virou mulher de verdade, com ciclos de temperatura. Vista como louca por uns, amante imperdível por outros, esqueceu que desejava um regador, esqueceu mesmo que precisava ser aguada, de vez em quando. Mulher-Bomba.com. Para sempre, gradualmente inflamável.