Lá estava ele, segurando uma sacola de frutas e verduras, sem saber o motivo de ter comprado aquilo. Olhava aquelas coisas coloridas e só pensava em quem iria comê-las. Tentou lembrar se tinha família que precisasse alimentar, mas não lembrou. Então, resolveu largar a comida ali e ir para outro lugar.
Numa cidade turística como o Rio de Janeiro, e estando numa rua tão pouco glamorosa quanto a Nossa Senhora de Copacabana, só pôde imaginar como novo cenário a praia, a famosa Avenida Atlântica. Mas a verdade era que ele não podia ir para lugar nenhum, porque não sabia de onde vinha. Então, sentou num banco de cimento, não de praça, mas de praia, de frente para o mar de Copacabana e para os atletas do posto 6, os remadores, nadadores, os jogadores de vôlei, os sexagenários, os pombos se alimentando da sujeira na areia. Não era dia, mas também não era noite ainda, era aquele meio de caminho, aquela hora em que pessoas desesperadas se perguntam qual o sentido da vida. Ele tentou fazer isso, mas não conseguiu nenhuma resposta significativa. Não lembrava seu nome, quanto ganhava, seu telefone. Ficou ali sentado, olhando, a cabeça em branco como a folha de qualquer escritor de história ruim.
Num certo momento, uma mulher sentou ao seu lado. Muda e sem cor, ela provavelmente também não sabia o que fazer nem para onde ir. Acendeu um cigarro e ofereceu um trago. Ele aceitou, mas achava que não fumava. Ela disse que se chamava Susan e que tinha sido expulsa da própria vida. Ele quis saber como isso era possível e ela disse “não sei, mas foi o que aconteceu”. Susan tinha um molho de chaves no bolso – mostrou para ele -, mas disse que elas não abriam nenhuma porta; já tinha tentado a fechadura que reconhecia como sua, mas não dera certo.
Ele fumou o cigarro todo e ela não reclamou nem acendeu outro. Os dois em silêncio, e ele começou a ter a sensação esquisita de conhecer aquela mulher. Afastou-se alguns milímetros. Parece que ela nem percebeu, mas arrastou o corpo no banco na direção dele, e a dupla voltou àquela proximidade estranha. Ele pigarreou, foi coisa instintiva, e ela falou, de repente. “Você vem sempre aqui.” Ele estranhou, achou que era uma cantada cafona, mas respondeu: “Isso, eu venho correr todo dia, de manhã”.
E olhou para ela, esperando que o corpo desse algum sinal de que aquela informação era verdadeira. Levou as mãos às coxas, sentiu a musculatura e pensou que, sim, talvez realmente corresse diariamente. É, era uma possibilidade. Ela continuou: “Você é dentista e o seu consultório é logo ali”. Apontou exatamente para onde ele estava antes, e ele de repente lembrou da sacola de frutas e verduras. Ela disse que ele costumava parar numa barraquinha no caminho do consultório e comprar flores para a mulher. Ele não lembrava de nenhuma flor. Nem de mulher.
“Mas, hoje”, ela continuou, “você saiu de casa com um humor esquisito e provavelmente não comprou as margaridas de sempre.” Ele mandou que ela calasse a boca. Era muito chata essa coisa de fingir que sabia da vida dos outros. E ela parou de falar. Os pensamentos do homem foram para bem longe daquele banco e ele teve a sensação de lembrar que tinha acordado às sete, como todos os dias, desde que se entendia por gente, olhado para o lado, visto a mulher dormindo, o relógio na cabeceira e voltado a dormir. E só. Era aí que sua memória parava. Depois eram as frutas e as verduras, a Nossa Senhora de Copacabana e a praia. E aquela maluca contando como era sua vida; apesar de não ter nem a mais vaga lembrança dela.
“Você também corre?” Tentou retomar a conversa, para entender como a mulher sabia coisas da sua vida. Ela disse que não corria. “E como é que você sabe que eu corro?”
“Quer dar uma volta?” Foi a resposta evasiva dela. Ele pensou um pouco e decidiu arriscar.
Perambularam, ela mostrando coisas: o restaurante onde ele comia nos finais de semana, o cara da barraquinha de coco, a jovenzinha que passeava com cachorros todo os dias de manhã e sorria para todo mundo na calçada. Os sinais que ele costumava atravessar na volta da corrida para casa. E, de repente, quando o sinal ficou vermelho e eles se prepararam pra atravessar a rua, ele parou. Ela reclamou: “A gente vai perder o sinal”. Tudo bem, perdessem. Ele disse “acho que te conheço, Susan”. E ela disse “graças a Deus”.
Atravessaram a rua. Deixaram o brilho da praia e adentraram o cinza que mora nas ruas de Copacabana. Os passos dele se aceleraram. Ela tentou acompanhar. Passaram por um camelô e ela parou na porta de um prédio. Cumprimentaram o porteiro que não tirou a cabeça, nem os olhos, do corpo incinerado estampando a primeira página do jornal popular. No elevador, ele instintivamente apertou o botão de número 13 e ela descansou o corpo na parede. Parecia tão cansada, mas, ainda assim, tinha uns olhos lindos, vivos.
Ele procurou um espelho – elevadores sempre têm espelhos, mas esse não tinha. Esperou a porta abrir no décimo terceiro andar. No corredor, ela caminhou até uma porta. Pediu as chaves para ele, que não se lembrava de ter chave nenhuma. Mesmo assim, enfiou a mão no bolso. Estranho. Chaves. Várias. Com chaveiro e tudo. Os dois entraram num apartamento arrumado, margaridas em vasos, janela para a rua, o vento levantando a barra das coisas. Ele respirou fundo. Era tudo tão familiar que ficou com vontade de sentar no sofá e tirar os sapatos. Ela disse “aí, não” e segurou as mãos dele; as dela estavam tão frias.
Atravessaram um corredor e ela abriu uma porta. Ele levou um choque tremendo ao ver a si mesmo, junto daquela tal de Susan, deitado numa cama de casal, dormindo profundamente. Ela perguntou se ele sentia cheiro de alguma coisa e ele respondeu “acho que sim”. Ela explicou: “Teve um vazamento de gás. A gente nem percebeu que estava morrendo. E aí, morreu mesmo. Quando eu acordei, acordei não é exatamente a palavra, mas é mais ou menos a mesma coisa, não te vi na cama. Fui procurar, porque achei que você não devia saber o que tinha acontecido. Eu fui te buscar. Agora, a gente pode voltar a dormir e morrer de verdade. Alguém vai sentir a nossa falta e vai vir procurar. Vem.”
Eles deitaram na cama. Ela disse “agora, fecha os olhos”. Ele fechou.