Nossa, é tão boa a sensação do vento no meu rosto. A espuma do mar alcançando o meu corpo. Há quanto tempo eu não sentia isso? Oitenta e seis anos. Foi uma resposta aleatória que ecoou na minha mente. Mente? Opa. O que é que está acontecendo? Baixo levemente os olhos e me dou conta de que tenho pelos. Muitos pelos. Sou um cão? Levanto assustado.
“Bruce! O que foi?”
Em segundos, as mãos do meu dono estão em volta do meu pescoço. Como se ele quisesse me acalmar. Ou algo assim. Deito. Ele continua falando comigo, mas eu paro de ouvir. Simplesmente acompanho as expressões faciais daquele homem que parece gostar muito de mim. Meu Deus. Eu sou um cachorro. E começo a me lembrar de quando eu não era. Para que essa consciência desnecessária e tão repentina? Cães não devem ter esse tipo de pensamento. Ou será que eles têm e nós, humanos, digo os humanos não fazem ideia? Não. Porque eu já sou um cão de oito anos. E só agora me vem essa chuva de memórias e pensamentos. Entro em estado de alerta novamente.
Estou perto da morte? Será isso? Tento me lembrar de como foi morrer, antes, mas não lembro. O homem que parece ser meu dono – não, hoje em dia se diz tutor, que bobagem – está agitado. Ele percebe que tem alguma coisa acontecendo comigo. A minha angústia? Não conseguir dizer para ele o que é. Bem, se eu conseguisse, talvez até provocasse um dano maior. Porque não sei se ele suportaria um cão que fala. Todo humano pede que seus animais falem. Mas quero só ver quando o primeiro começar. Não vai acontecer. Pelo menos, eu acho que não. Porque a verdade é que o que está se passando comigo não deve ser comum. Mas eu não me lembro de ter sido cachorro, antes. Então… e também não sei se essas coisas aleatórias passeando na minha mente são lembranças, exatamente. Mas confesso que estou gostando de certas sensações que estou tendo. Um beijo na boca; a pele macia de alguém que eu amo; acho que é uma mulher. Sim, agora o rosto dela me veio. Nós estamos num navio. Talvez por isso eu tenha me lembrado da sensação do vento. Do mar. Então. Eu e ela estamos em lua de mel. Acabamos de nos casar. Estamos indo para as ilhas Galápagos. Eu sou biólogo. Eu e ela estamos abraçados olhando o mar. Uma tempestade vem vindo. É lindo de ver. Ela também gosta. De repente, meu coração dispara. E eu começo a ter lembranças estranhas. Estou vestido como um padre. Um jesuíta, talvez. A mulher me beija e o pensamento se apaga.
Mas agora, cachorro que sou, me lembro: pouco tempo depois, aquele navio naufragou. Então é isso, mesmo. Eu devo morrer daqui a pouco. Olho para o meu dono e sofro por ele. Gosta tanto de mim. É tão bom comigo. Paciência. Não sou eu que faço as regras. Por mim, ficava mais um tempo nessa vida boa. Vivo na praia. Como bem. Sou lindo e todo mundo me dá atenção. Eu só queria entender por que lembramos de uma vida passada antes de partir. Será que é para pensarmos em algum erro? Que devemos corrigir na próxima existência? Mas o que eu posso ter feito de mal como um mero cão urbano? Ou como aquele jovem apaixonado? Começo a latir, como se perguntasse aos céus. Meu amigo humano se assusta de novo. Eu silencio. Não quero antecipar seu sofrimento.
É quando, de repente, a resposta me vem: não é matemático assim, o ir e vir de vidas. Nos é dada a chance de lembrar, simplesmente para sabermos que não acaba. Não sei para onde eu vou. Não lembrarei de nada enquanto for vivo. Mas quando estiver perto do fim de uma jornada, vou ser agraciado com a consciência de que o tempo é muito mais do que a nossa experiência. Isso me dá um alívio profundo. E uma alegria também.
Rolo na areia e fico de barriga para cima. Do jeito que meu tutor mais gosta. Ele sorri, aliviado. Para ele, quando estou assim, é sinal de que estou relaxado, feliz e confiante. E eu estou. Mesmo sabendo estar perto de um dos meus fins. Um dia ele também vai passar por isso. Será que ele vai lembrar de mim? Deste momento? Levanto animado e instigo meu amigo a dar um mergulho. Juntos, atravessamos a espuma branca e boa da beira do mar. Ele me abraça. Somos felizes.